Praia de Boa Viagem, no Recife, concentra 23 dos 59 ataques registrados oficialmente pelo Cemit (Foto: Luna Markman / G1)
A degradação ambiental na costa de Pernambuco, com supressão de áreas de mangue, poluição de praias e a construção do Porto de
Suape,
no Litoral Sul, estão entre os fatores apontados por especialistas e
ambientalistas para a incidência de ataques de tubarão no Grande Recife.
Uma audiência pública nesta sexta-feira (18), no auditório do
Ministério Público Federal (MPF), debate formas para prevenir novas
ocorrências na orla. A última vítima, uma turista de São Paulo, morreu
após ser atacada, há três meses, na Praia de Boa Viagem, um dos
cartões-postais da capital pernambucana. O Comitê de Monitoramento dos
Incidentes com Tubarão (Cemit) contabiliza 59 ataques com 24 mortes nos
últimos 21 anos, quando a contagem começou a ser feita.
O encontro no MPF vai buscar identificar o que tem sido feito pelo
estado para evitar ataques, além de novas medidas que podem ser
implementadas para dar maior segurança a banhistas e surfistas. O Cemit
participa da audiência, trazendo um pouco do trabalho que vem sendo
desenvolvido. "Essa audiência é a oportunidade de explicarmos qual o
trabalho do Cemit, que é de prevenção e também estudo, além de
esclarecer alguns mitos que dão margem para que as pessoas acreditem em
soluções absurdas para a questão dos tubarões", explica a presidente do
órgão, Rosângela Lessa.
No texto da convocatória da audiência, a procuradora da República Mona
Lisa Ismail e o promotor de Justiça Ricardo Coelho explicam que o
encontro tem cinco objetivos, como colher subsídios e informações
adicionais no que se refere a medidas para prevenção de ataques,
discutir alternativas para evitar o aumento do número de vítimas, além
de definir ações para evitar a pesca predatória de tubarões. "O Cemit
estará lá, juntamente com o MPPE e MPF respondendo a todos os
questionamentos, ouvindo sugestões. É a grande oportunidade de debater o
tempo, gerir soluções, já que muito pouco vinha sendo feito", aponta o
promotor.
Praia de Boa Viagem registrou último ataque em julho
(Foto: Priscila Miranda / G1)
Tela de proteção
Um edital está sendo preparado pelo Cemit para a instalação de uma tela
de proteção em caráter experimental, na altura do Edifício Castelinho,
mesma região em que ocorreu o ataque à turista paulista Bruna Gobbi. A
intenção é criar uma área segura para banhistas, mas que também não
prejudique o meio ambiente. "A condição dessa tela é que não pesque, não
interaja com o meio ambiente. Não seja um problema para golfinho,
tartaruga, tem que ser inócua ambientalmente", destaca a presidente do
Cemit, Rosângela Lessa.
Desde o último ataque, foram anunciadas novas placas de sinalização
para alertar frequentadores do litoral. De responsabilidade da
Secretaria de Defesa Social, a colocação e manutenção das placas estão
sendo feitas com o apoio de prefeituras nas praias de Barra de Jangada,
Candeias e Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, e do Paiva, no
Cabo de Santo Agostinho.
O Corpo de Bombeiros também aumentou para três a frota de motos
aquáticas disponíveis durante o final de semana, elevou de 53 para 64 o
número de guarda-vidas e investiu na sinalização das sete correntes de
retorno. Segundo a corporação, a estudante Bruna Gobbi foi puxada por
uma dessas correntes quando atacada pelo tubarão na Praia de Boa Viagem.
Jovens entre as principais vítimas
Segundo o Cemit, que registrou 59 ataques de tubarão, 70,2% das vítimas
tinham entre 14 e 25 anos. Além disso, 35,1% das ocorrências foram
registradas durante o período de Lua cheia.
Dos 59 ataques, 23 ocorreram na Praia de Boa Viagem e 17, na vizinha Praia de Piedade, situada em
Jaboatão dos Guararapes,
na Região Metropolitana do Recife (RMR). Entre 1991 e 2010, a
população de Jaboatão cresceu 32,3 % segundo dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indo de 487.119 para
644.620, enquanto no Recife o crescimento foi de 18,45% no período,
evoluindo de 1.298.229 para 1.537.704 pessoas.
Urbanização da orla do Grande Recife é apontada como fator contribuinte para ocorrência de ataques (Foto: Katherine Coutinho/G1)
Animal de deslocamento fácil
O crescimento populacional na região litorânea, com a consequente
urbanização de áreas junto às praias e degradação do meio ambiente, é
apontado como um fator de destaque, visto que a destruição de mangues
influencia diretamente na vida marinha. “Há um tempo, a gente fazia uma
análise meio cartesiana. Dizia que só Suape está causando, só Recife
está tendo problema, mas a gente não pode ter essa visão, porque o
sistema é um todo. O tubarão é um animal que tem um deslocamento muito
fácil. Problemas que aconteçam em Suape vão atingir aqui. A base
costeira de produção de alimento está entre os manguezais e a formação
recifal. A gente não tem mais manguezal na zona urbana do Recife
praticamente”, aponta o professor Múcio Banja, da Universidade de
Pernambuco (UPE).
Um estudo feito pelo Instituto Trata Brasil, divulgado no começo de
outubro, fez um ranking da questão do saneamento e água nas 100 maiores
cidades brasileiras. No Recife, que ocupa o 69º lugar no ranking, 82% da
população recebe água tratada, mas menos da metade da cidade (35%)
dispõe de rede de esgoto. Índice inferior é registrado em
Olinda,
onde 32% dos moradores têm acesso ao serviço. Em Jaboatão, apenas 7%
das casas contam com esgoto, o que coloca o município na 97ª posição da
lista.
Além da poluição das águas, características de correntes fazem do
Recife
um dos pontos mais propícios para a ocorrências de ataques, explica o
professor Fábio Hazin, do Instituto Oceanário. “Temos a existência de um
canal, próximo a essa linha de costa, uma praia populosa, o Rio
Jaboatão, com elevada descarga de poluição orgânica, correntes no
sentido sul-norte, elevada turbidez, correntes de retorno, a presença de
um complexo portuário imediatamente ao sul, e certamente outros que não
conhecemos contribuem”, enumera.
Hazin aponta ainda que os tubarões são atraídos pelos navios e, quando
as embarcações entram nos diques, os tubarões desviam o percurso e
procuram a corrente mais próxima na direção norte. Esta corrente os leva
ao Estuário do Rio Jaboatão, onde há banhistas e, consequentemente,
risco de vítimas.
Suape multado
Mês passado, o Complexo Portuário e Industrial de Suape foi multado
pela Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) após comprovação de
denúncia feita por pescadores de que as obras de dragagem e derrocamento
incidem diretamente em áreas estuarinas da região, provocando impactos
ambientais. O estudo ainda conclui que, além de haver relação direta
entre as obras e a mortandade dos peixes protegidos por lei, a atividade
do Porto impacta e destrói territórios pesqueiros entre os municípios
de Ipojuca e do Cabo de Santo Agostinho.
A construção do porto é também atrelada a um contexto de destruição e
construção de aterros, como o ocorrido na foz dos rios Ipojuca e Merepe.
“Dizer que Suape não tem culpa na questão dos ataques de tubarão é um
erro, é claro que tem sua contribuição. Suape faz parte de um contexto
de destruição, que atingiu também a zona estuarina do Rio Capibaribe, do
Rio Beberibe, do Rio Jaboatão. O único berçário que ficou para os
tubarões foi o Rio Massangana”, explica Múcio Banja.
O tubarão é apenas um indicativo de todo um problema maior, como a
diminuição do número de peixes tanto na região do Recife quanto de
Suape, constatado em um estudo feito na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). “O estudo da professora Sigrid Neumann-Leitão mostra a
alteração antes das modificações na região de Suape e depois, chegando à
conclusão que 80% das larvas de determinados grupos desapareceram. Essa
é a base da cadeia”, explica a presidente do Cemit.
Para Suape, faltam estudos que comprovem responsabilidade (Foto: Daniela Nader / Porto de Suape)
Porto diz que respeita normais
Para o diretor de Planejamento e Urbanismo de Suape, Jaime Alheiros,
ainda falta comprovação da questão dos navios influenciarem a rota
migratória dos tubarões. “Tubarão sempre teve aqui, o que não está tendo
é peixe. Eu não vou poder impedir os navios de chegarem, eles vão
continuar chegando. Então, como vamos conviver de maneira mais
harmoniosa? Primeiro, comprovar o grau de influência desses navios para a
questão migratória dos tubarões. Lança os tubarões marcados ali, lança
os espinhéis na rota dos navios e veja o que acontece”, sugere.
Além disso, aponta Alheiros, a teoria dos barcos atraírem os tubarões
estaria ligada aos navios pesqueiros, que chamariam a atenção dos
animais devido ao rastro de sangue e peixes, e Suape não recebe navios
pesqueiros, apenas cargueiros. Com as normas internacionais, não há
descarte de alimentos a menos de 37 quilômetros da costa, e no Porto
isso é controlado. “Entre existir uma legislação internacional e ela ser
cumprida há uma grande distância. Além disso, tubarões-tigre costumam
seguir grandes embarcações, independentemente do lixo. É um
comportamento típico da espécie”, contrapõe Hazin.
Para a administração de Suape, o aparecimento dos tubarões é muito mais
ligado à questão da urbanização do que à construção do porto. “Quando a
gente vê a tabela movimentação de navios versus ataque de tubarão, a
gente vê que o período que mais teve ataque de tubarão, o volume de
navios era muito menor que o de hoje. [...] A gente sente falta no
estudo de um aprofundamento. Uma vez que a teoria foi lançada, ela
precisa ser comprovada cientificamente”, afirma Alheiros.
Estudo com arrecifes artificiais na região de Suape mostra
avanços (Foto: Múcio Banja / Arquivo Pessoal)
Peixes em risco de extinção
Independente das causas, pesquisadores concordam que o número de peixes
na costa diminuiu – seja por pesca predatória, poluição ou até mesmo a
construção do Porto. “É provado, cientificamente, que nossa orla é um
deserto. Nesse ambiente hostil, só quem sobrevive é o predador, é o
tubarão. O que queremos é recuperar a vida no ecossistema, tudo isso que
foi roubado do mar”, aponta o promotor Ricardo Coelho.
Uma forma de trazer a vida de volta ao mar é investir em arrecifes
artificiais e também buscar o replantio de mangue, mas ambos os projetos
devem ser estudados e analisados com cuidado. O processo para volta do
manguezal exige tempo e um longo preparo, explica Banja, principalmente
devido à relação próxima que as plantas têm com o solo.
“Quando você tira o manguezal, o sedimento modifica. Então, o mangue
não volta naturalmente para um sedimento para onde ele não tem
afinidade. É como se ele segurasse o sedimento adequado para ele. Quando
você tira, ele não segura mais as margens e as águas, as marés,
transportam esse sedimento, modificando completamente o ambiente. É como
se ficasse um ambiente árido, mesmo tendo sido uma área de manguezal,
onde o mangue não consegue mais se adaptar. Por isso que tem que ter um
preparo de solo, uma inclinação correta, um preparo do sedimento”,
explica.
Os arrecifes artificiais exigem ainda mais estudos e precisam ser
aprovados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio). O processo pode levar anos. Um estudo desenvolvido a partir de
uma demanda da Usina Termelétrica de Pernambuco, na região de Suape,
pela equipe comandada pelo professor Múcio Banja, mostrou que os
arrecifes artificiais servem como ponto de atração para os peixes. “A
usina tem um sistema de captação de água que são tubulações imensas que
pegam água constantemente para resfriar as turbinas, o sistema de
produção energética. Nessa época, eles perceberam que uma grande
quantidade de peixes estava sendo sugado por essas tubulações e
morriam”, explica o professor.
Praia de Boa Viagem está situada no trecho do litoral de PE
onde há risco de ataque (Foto: Reprodução/TV Globo)
Através de estudos de correntes, profundidade, navegação e mapeamento
do ambiente biológico, seria possível identificar os pontos ideais para a
instalação dos arrecifes. “Se fizéssemos instalações de pontos desses
nós, teríamos com certeza atração de peixes e esses peixes poderiam
servir de alimento para esses animais. Tubarão de barriga cheia não
morderia ninguém, você vê em Fernando de Noronha”, pondera Banja,
lembrando que não basta afundar algo no mar. “Nossa plataforma
continental não é lixo e você tem que ter quem se responsabilize de
retirar caso provoque algum dano. A chance é mínima”.
Esse projeto poderia ser integrado ao do promotor, que busca a criação
de parques marinhos, a exemplo do de Fernando de Noronha, diante de cada
um dos 15 municípios litorâneos pernambucanos. “A gente está lutando
para que esse dinheiro [do passivo ambiental] de Suape e das empresas
seja utilizado e bem utilizado para ações como essa, de manter os
parques marinhos, ampliar o trabalho do Cemit”, enumera Coelho.
Além dos parques, o promotor explica que vem atuando em outras frentes
para poder lidar com a questão. "Queremos mais barcos ajudando o
Sinuelo, mais educação preventiva, que sejam colocadas as telas de
proteção nos locais onde a população frequenta mais a praia, pretendemos
também que seja recuperada a vida marinha", finaliza o promotor,
ressaltando que ainda espera ouvir especialistas estrangeiros sobre o
assunto.
FONTE G1 PE.