Lixo não é problema só do governo. É de todos
No ano passado, o Brasil produziu uma montanha de lixo. Foram quase 63 milhões de toneladas de resíduos sólidos.
Foto: Diego Nigro/JC Imagem
É mais do que absurdo e
indignação. É desperdício e inoperância. A foto do menino de
Saramandaia, quase engolido pela sujeira do canal, carrega um pouco de
todos nós (ver galeria de imagens no final da matéria). É o
nosso lixo de cada dia que está ali, espiando os pecados de uma cidade
que não aprendeu a tratar seus restos com consciência e cidadania. A
confissão de culpa flagrada em cada detalhe. Perpetuada nas milhares de
garrafas PET, sacos plásticos, latinhas de refrigerante, na trivial
embalagem de margarina. Quase tudo reaproveitável. Não deveria, nem
precisava estar lá. De onde veio esse mar de entulhos que, dragado pela
maré baixa do Canal do Arruda, sufoca e corrói a infância dos meninos de
Saramandaia? Como ele foi parar ali na foto que correu o mundo?
Basta ver. É lixo vindo das nossas
cozinhas, da rotina diária de todas as casas. Lixo doméstico. Produzido
por uma metrópole que ainda não incorporou, sequer descobriu, a coleta
seletiva como um hábito saudável e urgente. A população até sabe da
importância de reciclar, mas o costume de separar garrafas, vidro, papel
é muito mais discurso do que prática. Uma pesquisa inédita do Centro de
Apoio Operacional às Promotorias de Meio Ambiente do Ministério Público
de Pernambuco, realizada com moradores do Grande Recife, vai direto ao
ponto. Feito no final do ano passado e recém-concluído, o levantamento
não deixa dúvidas: todos são a favor da reciclagem. Mas poucos,
pouquíssimos, contribuem com ela. Os números evidenciam a contradição do
dia a dia. Cerca de 95% dos moradores ouvidos consideram a coleta
seletiva importante. Mas apenas 10% separam diariamente o lixo, condição
fundamental para a reciclagem.
Na tentativa de apontar uma explicação
para um percentual tão baixo de adeptos da coleta seletiva, a pesquisa
questiona, entre os que afirmaram que “nunca”, “raramente” ou “só às
vezes” separam os resíduos, o por quê dessa resistência? A resposta
coloca o dedo na ferida: quase 60% dos entrevistados afirmaram que não
fazem a coleta separada porque a prefeitura, na hora de recolher o
material reciclável, mistura tudo com o lixo comum. É um problema
agravado por outro. Se o universo dos que reciclam é mínimo, a falta de
continuidade e exemplo do poder público desestimula, e até afasta, quem
poderia e deveria ser convencido a adotar uma prática mais sustentável.
O impasse se volta, de novo, para a foto
de Paulinho, o menino de 9 anos, que ganha, quando muito, R$ 5, por
dia, para separar o lixo que o descaso e a omissão jogaram no canal. A
pesquisa, feita em parceria com a Faculdade Frassinetti do Recife
(Fafire), quis saber, quem, na opinião da população, é o maior
responsável pelos problemas gerados pelo lixo. Pelo menos no discurso, a
compreensão é clara: para quase 60% das pessoas ouvidas, esse é um
problema de “todos”.
Nas ruas do Recife, o resultado do
levantamento fica evidente de uma forma inconteste e preocupante. Não
importa qual o pedaço da cidade, se o lado dos ricos ou dos mais pobres,
o hábito de jogar dejetos nas vias públicas é uma prática de todos.
Independe do endereço e do valor do IPTU pago. Improvável imaginar que
na Avenida Beira-Rio, no bairro das Graças, área nobre da capital,
existe um lixão a céu aberto. Mas ali, às margens do Rio Capibaribe e
aos pés dos arranha-céus de luxo, cresce diariamente um depósito
alimentado pelos restos de construção de prédios e casas de moradores da
própria região. A reportagem flagrou o momento em que um dos
carroceiros despejava metralha trazida de uma reforma feita por um
edifício a poucas quadras dali. Uma rápida olhada no lixo orgânico
depositado no trecho privilegiado da cidade também é revelador: garrafas
de vinho italiano, azeite extravirgem de qualidade e vinagre balsâmico
se misturam a restos de comida que espalham o mau-cheiro e infestam de
insetos o lado rico do rio.
Morador da área, o administrador de
empresas Ivan Rui de Andrade Lima está cansado de ver, de madrugada,
caçambas e caminhonetes despejando os restos de construção na beira do
Capibaribe. “É o lixo da classe média alta. Como se esse não fosse um
problema também deles. Querem se livrar dos entulhos e jogam em qualquer
lugar. É revoltante”, diz. Ele mesmo evitou que os restos de construção
da reforma feita no próprio edifício fossem jogados na beira do rio.
“Quando vi que os funcionários da empresa responsável pelo serviço iam
jogar lá, adverti. Esse eu consegui evitar”, conta. É a mesma falta de
consciência que incomoda o vigia Uberlândio Nascimento, morador de um
conjunto popular do bairro da Torre, na Zona Norte da cidade. Acostumado
a ver os vizinhos jogando lixo até pela janela, ele desabafa: “O
problema é que as pessoas reclamam, mas ninguém faz a sua parte. O bom é
jogar a culpa nos outros”. Na calçada do residencial, o cenário traduz a
revolta do vigia: sacos de lixo rasgados e espalhados e um colchão
velho largado na calçada.
FONTE: NE 10 .
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